A rebelião do presídio da Ilha Anchieta

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Ruínas do presídio na Ilha de Anchieta

Uma estratégia digna de aplausos

A Rebelião do presídio da Ilha de Anchieta foi como aqueles filmes nos quais você não sabe se torce pelo bandido ou pelo mocinho, pois após os acontecimentos o que restou foi apenas a marca registrada de um grande estrategista e sua formidável inteligência. O que passou não se julga, deixa apenas seus vestígios. E essa magnífica história, cheia de dores e alegrias é que queremos deixar aqui registrada.

O início de tudo

Uma ilha paradisíaca cuja história foi marcada por acontecimentos de relevância inconteste para a história do Brasil, primeiramente, recebeu em suas praias Cunhambebe, chefe Tupinambá que dominou todos os caciques Tamoios entre a região de Cabo Frio e Bertioga, que fazia da ilha uma espécie de colônia de férias além de todas as negociações e estratégias de luta contra seus inimigos. Foi palco também de observatório dos ingleses, que controlavam o tráfico negreiro, pois sabia que pelo porto de Ubatuba havia carregamentos ilícitos de escravos.

A Ilha, em 1902 era habitada por 402 famílias caiçaras, que foram deslocadas para o continente com a construção de um presídio que inicialmente foi feito para presos de pequenos delitos – vagabundos e cassineiros (pessoas que trabalhavam com o jogo) – inaugurado em 1908.

Ubatuba-historia-ilha-anchieta-antiga-bx1914

Em 1914 foi desativado e só foi reaberto em 1928. Quando Getúlio Vargas subiu ao poder, transformou a cadeia em prisão para políticos e foi denominada de Instituto Correcional da Ilha Anchieta. Na segunda Grande Guerra, muitos presos que ali viviam e também soldados e civis, avistaram um submarino, que achavam ser de nacionalidade alemã.

Com medo, todos pediram para que fossem transferidos por conta da ameaça, e foram prontamente atendidos. Então, mais uma vez o presídio ficou estagnado por um período curto e depois transformado no primeiro presídio de segurança máxima do estado de São Paulo, devido a sua localização supostamente à prova de fugas.

Tivemos o privilégio de conversar com a Sra. Dionéia da Cruz, professora aposentada. Hoje, Dio, como gosta de ser chamada, é monitora histórico-cultural da ilha do Programa Filhos da Ilha, uma iniciativa que visa trazer antigos moradores do local que vivenciaram a Rebelião. O objetivo maior é preservar a história de maneira viva. Junto às ruínas, mais uma testemunha, o estudo desse momento brasileiro gera um tom realístico atual à história.

Dio, na época com sete anos, morava com sua família na então denominada Ilha dos Porcos, quando seu pai era chefe de presídio. Sua família tinha um convívio tranqüilo em relação aos detentos. A vida das famílias era baseada na rotina dos presos. O governo enviava alimentos e gêneros de primeira necessidade pelo mar de Santos. No local havia horta, bananal, galinhas, vacas, uma mini fazenda com muitos porcos, tudo destinado ao presídio.

Os moradores compravam comida do continente. Compravam a sobra dos bois abatidos para os presidiários. O pão era comprado do presídio, o sovado e o rústico. “Era gostoso, a vida era maravilhosa. Quando saía daqui, era para casa dos meus avós, no Perequê Mirim, nas festas religiosas. O pessoal tratava a gente como se fosse da capital, pois tinha mais gente aqui que lá. Era como um bairro chique.”

Ubatuba-historia-ilha-anchieta-DSC_0548-bxOs Internos da Ilha de Anchieta

Eram mais ou menos 440 internos que se revezavam nas tarefas. Havia turnos para corte de madeira, para a produção de lenha, para a criação dos animais, padaria, limpeza etc. Os que não saíam para trabalhar ficavam no chamado quadrado (foto ao lado) e as celas permaneciam abertas durante o dia. Tudo era feito e tratado pelos presos, inclusive a pesca, oportunidade de muitas fugas. As canoas eram trancadas a noite e vigiadas.

Perguntamos à Dio como era possível essa convivência tão díspar. E com uma resposta simples ela disse que não conhecia outra realidade e que não tinha parâmetros. Conta-nos algumas curiosidades a respeito; um exemplo foi quando ela viu um carro pela primeira vez, achou que era uma fera que roncava. Essa forma de vida era simples e o convívio com o “barril de pólvora” era normal.

Mas, em 1952, o “barril” explodiu de forma tão elaborada que é difícil de acreditar. Um plano arquitetado durante um ano e minuciosamente colocado em ação.

Um ano antes, foi feito um abaixo assinado, tanto pelos detentos como pelos policiais, para tirarem o Capitão, que era deveras enérgico. Ele foi substituído pelo Tenente Fausto Sady Ferreira, relações públicas e sem experiência para a monta do cargo. Nas “entrelinhas” do presídio, Álvaro da Conceição Carvalho Farto, engenheiro estelionatário, com um enorme currículo de fugas, com muita astúcia, foi o mentor dessa eclosão.

Portuga, seu codinome, “recrutou” Pereira Lima (ex-sargento da Força Pública condenado pela morte de outro militar num cabaré por causa de uma mulher), que entendia muito de armas e manejo de grupos. Os dois ordenaram aos outros detentos que, dali por diante, todos tinham que ser muito disciplinados, não brigarem entre si e deixar assim um clima de muita paz.

Dio conta que seu pai andava preocupado com tamanha calmaria dentro do presídio, que isso era um mau presságio.

Ubatuba-historia-ilha-anchieta-DSC_0408-bxCom toda essa “tranqüilidade”, os presos foram tendo mais regalias e liberdade. O diretor atendia aos presos e ouvia o representante dos grupos com suas reinvidicações. Um dia, Portuga foi conversar com o diretor e disse que fazia cinco noites que não dormia porque escutou um boato que queriam matá-lo, então ele foi transferido para a cela chamada “isolada”. Ali, Portuga teria condição de planejar a fuga à vontade e durante o dia passava as ordens para os outros.

Na rotina diária, o tiro de fuzil era considerado o alarme e só era disparado no caso de muita necessidade, dessa forma, os militares que moravam na parte mais acima, iam para o quartel pegar as armas. Sabedor disso, Portuga tinha que desarmar o alarme.

Como o diretor era exímio atirador e ficava no píer jogando pratos treinando com arma pequena, utilizou o responsável pela limpeza (Leitão) para bajular toda vez que Sady acertava o alvo, empolgando e desafiando para que utilizasse uma arma mais poderosa, como um fuzil. Como Leitão caiu nas graças do dirigente, o tiro do fuzil virou uma rotina aos ouvidos dos militares. Pronto, o primeiro passo foi dado, o alarme não existia mais.

Para poderem pegar as armas, precisavam saber tudo o que acontecia no local em que eram guardadas e, para isso, o estrategista convocou Mão Francesa que era homossexual, um assassino frio e calculista e que sabia cortar cabelo. Com essa habilidade e uma disciplina exemplar, o cabeleireiro conseguiu a permissão de cortar os cabelos dos soldados na casa onde as armas eram guardas e assim entendeu todos os procedimentos adotados pela segurança do local e passou um desenho da casa por dentro para Portuga.

O estelionatário tinha agora nas mãos tudo o que precisava de básico para colocar seu plano em ação, acrescentando mais alguns pontos de genialidade que era retirar o máximo de soldados da área do presídio no dia da fuga. Para isso, na coleta de lenha, alguns prisioneiros assassinaram Dentinho, um cativo dedo-duro. Com o desaparecimento do mesmo, vários guardas foram destacados para procurá-lo nas matas.

No dia seguinte, sobraram apenas três soldados para acompanhar 117 presos na área da lenha, o que não é difícil imaginar que os infelizes não deram conta do recado e ali ficaram para sempre. Os cativos vieram das matas carregando as toras normalmente e quando chegaram à casa de armas a invadiram e mataram dois soldados. Pegaram as munições e partiram para a casa do Chefe de Disciplina para matá-lo.

Diretor e Refém

Depois fizeram de refém o Diretor e o Tenente e os prenderam em uma cela. Agora estava tudo calmo aparentemente, para que quando a lancha Ubatubinha – que vinha regularmente à ilha abastecer o almoxarifado – chegasse, os rebelados pudessem sair da ilha com ela junto às outras canoas de pesca. Porém o mar ficou ruim e a lancha não chegava, deixando todos desesperados. Começaram a beber e a queimar os arquivos que ficavam na administração, e consequentemente o prédio pegou fogo. A lancha que já estava chegando voltou porque havia algo de errado.

Mas quem chegou a dar a notícia da rebelião foi o soldado Simão Rosa da Cunha que correu e atravessou o boqueirão no Morro da Espia e, como estava acostumado com o mar, calculou onde poderia nadar até o continente. As forças estaduais foram acionadas e as tropas vieram por volta das quatro horas da manhã. Com o retorno da Ubatubinha ao continente, os presos se apavoravam e saíram com as canoas.

Desesperados, pois não havia lugar para tanta gente, muitos se afogaram. Os que conseguiram fugir chegaram a Ubatumirim e seguiram os fios do telégrafo. Junto ao bando, estava o mentor disso tudo, Portuga, que era cardíaco e perto da cidade de Cunha veio a falecer. Os demais foram perseguidos e pegos, vivos ou mortos, mas todos. Às quatro horas da manhã veio o primeiro reforço e os presos que não se revoltaram ajudaram as famílias que ficaram, o que reduziu suas penas. Um cativo até se tornou guarda de presídio.

“Na hora do conflito não vi nada, minhas irmãs estavam na escola que fica ao lado do local onde ocorreu todo o conflito e meu pai estava de folga nesse dia, mas ia levar uma pessoa ao médico. No caminho, encontrou Simão Rosa que contou ao meu pai o que estava acontecendo. Então desesperado correu até a escola para resgatar minhas irmãs, que estavam cantando e encolhidas no chão, voltou e falou para todos fugirem para o mato.

Nisso vieram dois presos para ajudar os civis, uma grávida com seus cinco filhos e as mulheres viúvas. E fomos para o sul, subimos o morro e entramos numa gruta cheia de morcegos. Ali nos escondemos, passando fome. A grávida entrou em trabalho de parto no meio de 18 crianças, ou seja, nós tínhamos que sair dali.

Caminhamos pelas praias com meu pai e outros homens, sempre apagando nossos rastros na areia e no meio do caminho encontramos um grupo de soldados que nos acalmou dizendo que os presos chefes já tinham fugido e muitos armados se enfiaram no mato. Encontramos tudo queimado e muito sangue no chão e a notícia dos maridos mortos logo chegou, uma cena brutal e doída, não consigo apagar da memória. E ficamos em celas, protegidos até tudo se normalizar”.

Monumento aos soldados mortos
Monumento aos soldados mortos

Tinham 452 presos no dia da rebelião, 99 são chamados de desaparecidos, China Show foi encontrado dois anos depois em Salvador. Paulo Viana assumiu a direção do presídio. Mais tarde vieram o juiz, promotor e advogados que abriram uma corte provisória e alguns presos foram julgados. Em 1955 os últimos presos foram levados embora e, em 1977, a Ilha Anchieta virou Parque Estadual.

Filhos da Ilha de Anchieta

O Programa Filhos da Ilha foi criado por Samuel Messias de Oliveira. É a maneira mais impressionante de conhecer nossa história. “Sinto que é uma obrigação minha, primeiro porque amo demais a ilha, o chão que pisei quando criança, é meu berço, com uma infância extremamente feliz. Faço pela minha terra, pela minha gente, por esse parque e todos os componentes. O que eu quero mais é divulgar a minha vida. Não fui a filha do Cunhambebe mas fui a Dionéia que nasci na ilha.”

Alguns relatos fazem a Ilha ser chamada de ilha amaldiçoada. “Ocorreram algumas coisas estranhas, a gente ouve muitas histórias. Uma vez chegou uma senhora que passou pela monitora correndo e perguntou se alguém conhecia um tal de Juarez, e todos disseram que esse homem não trabalhava lá. Perguntaram como ele estava vestido e ela descreveu a roupa que os presos usavam na época e descreveu também a de um outro, com uma calça cáqui, e disse que eles foram até o píer e falaram para ela “bem vindos à ilha Anchieta”.

Perguntamos a ela se era parente de algum preso e ela disse que não. Depois mostramos fotos e ela identificou o Mão Francesa e o tal Juarez, que era um antigo funcionário. Outro fato emocionante foi a visita da neta do preso Portuga, Luciana, que foi recebida aqui de braços abertos, pois que culpa ela tem. Demos as boas vindas, ela também é uma Filha da Ilha, e ela disse: só que do outro lado. Mas não é nada disso. Hoje somos todos de um lado só!”

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