Cultura caiçara: lição de humildade e sabedoria em Ilhabela

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Conversamos com dona Maria Leandro do Vale Salinas, moradora da Praia do Curral, que nos recebeu em sua casa datada de 1600. Aos 96 anos, ela é hoje a história viva desse povo, que tenta de todas as formas, manter sua cultura.

O padrasto

O senhor José Cristina do Vale, padrasto de dona Maria, era senhor de engenho de cachaça. Esse engenho teve vários nomes, mas fixou-se mesmo o de Cristina. Todos na família trabalhavam e não se media funções.

A cana era plantada nas encostas e barrancos dos morros e trazida às rodas de moagem com carro de boi. A maior parte da produção era transportada por canoas de voga a Santos. Essas canoas eram grandes, chegavam a carregar muitos produtos. A aguardente era desembarcada e trocada (escambo) por gêneros de primeira necessidade que não tinham no Arquipélago como: tecidos, sabonetes, bolachas, querosene etc. Muitas vezes o mar não estava propício à navegação, isso poderia ser tanto na ida como na volta.  Nestas ocasiões eram obrigados a se abrigarem em outras praias ao longo do caminho, como Bertioga. Normalmente esse percurso durava uma semana. Era uma vida difícil, especialmente para quem ficava a espera de seus filhos e maridos.

Seu pai morreu porque não tirava a cinta da cintura, onde carregava o facão. Infeccionou e generalizou. Morreu aos 40 anos. “O sol cozinhou o sangue dele” – o médico disse.

O marido

Seu marido era pescador, tinha uma venda e uma roça. Na lateral da casa, havia um rancho onde guardava as canoas de pesca e as redes de tainha. O mar era repleto de peixes, era tanto, que às vezes as redes nem agüentavam. Jogava-se a rede, que tinha 25 braças (precisavam de 12 homens de cada lado da rede para puxá-la), ao mar e um pescador ficava de “butuca”, observando a hora da chegada do cardume e com um berrante anunciava a todos os outros, que normalmente estavam trabalhando na roça. Era uma “festa”, vinham homens, mulheres e crianças, todos participavam. Tinha charelete, tainha, pescada, cação e porquinho – antigamente, jogava-se fora, estes dois últimos na hora da contagem dos quinhões (divisão do resultado da pesca per capita). Todo mundo consertava (limpava) e secava os peixes. Infelizmente seu marido morreu novo, aos 51 anos, de problemas cardíacos.

A casa

Em frente ao mar da praia do curral, literalmente nas areias, está localizada a casa pra lá de histórica de dona Maria. Segundo a família, aquela casa está ali, desde o século XVII, e que muitas coisas (muitas mesmo!) aconteceram ali. Primeiramente era uma casa de piratas, que ali se abrigavam mantendo algumas roças, depois veio o padre que transformou aquilo numa capela, onde Nossa Senhora do Amparo virou a padroeira. Após isso, a casa se transformou em casa de escravos. Muitos anos depois, serviu de convento e, onde hoje é o quarto de dona Maria, havia um altar onde se fazia a reza de missa.

Atividades cotidianas

Cuidar da roça do feijão, da banana e, principalmente, da mandioca – sustento básico – eram atividades rotineiras trabalhosas. Outra era limpar os peixes, secá-los ou salgá-los. Não havia eletricidade e tudo era muito difícil. Para ir à Vila (lado oeste da ilha, no Canal de São Sebastião), o meio de transporte era a canoa (demorava 2 horas em dia de mar calmo) ou a pé – “A gente ia no caminho que a gente chamava de caminho de rato, onde desse para passar você passava”. Caminhar até lá demorava horas e os caminhos eram picadas, ou seja, um evento. A exemplo disso, uma das filhas de dona Maria morreu sem ter tempo de chegar ao médico.

À noite, os mais velhos se reuniam para contar histórias e causos e as crianças ficavam escutando. Muitas dessas histórias eram de assombrações, como o Sr. Tomé, que se fantasiava de fantasma para assustar o povo debaixo da aroeira da cruz. Muitos sabiam da armação, mas outros não e ficavam apavorados só de pensar.

Dona Maria só entrava no mar vestida da cabeça aos pés e tinha de ser à noite, afinal, não ficava bem usar outros trajes que aguçassem a imaginação dos homens. E jamais mergulhou com a cabeça no mar, pois tem medo de ver a jamanta (raia gigante). NUNCA usou calça comprida e nem curta, nada, a não ser vestido, pois assim é que uma mulher deve se vestir. Casou aos 15 anos com o primeiro namorado que paquerava pelo buraco da fechadura. Sua irmã, dona Leonizia, aos 6 anos, quando a viu vestida de noiva, tomou um susto, parecia que estava fantasiada, jamais tinha visto uma noiva, isso pelo isolamento, não tinham referências externas.

O café da manhã era: angu de feijão, mandioca e batata cozida (dizem que era um café precário).

Dona Maria teve 10 filhos de parto normal, sendo que, em um, a bolsa estourou na cachoeira, enquanto lavava roupa, e ainda teve a coragem de voltar correndo para pedir ajuda. Sempre se virou bem. Uma vez ficou sem água e coletou a mesma da chuva.

Sobre os perigos do mar e de ter muitos parentes a mercê dessa força natural ela diz: “Bons navegadores, logo, poucos acidentes.”

Hoje, essa guerreira, que mesmo no isolamento tem um conhecimento de vida como poucos, tem 10 filhos, 16 netos, 17 bisnetos e um tataraneto. E fecha nossa entrevista demonstrando tudo isso: “Nunca achei nada difícil na vida, era uma vida sacrificada, mas feliz”.

Curiosidade

O nome Curral, segundo o avô de dona Maria, foi dado à praia porque morava lá um padre, então ficou praia “do cura”, pois cura significa padre.

 

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