Exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro é prorrogada

Em 2019, a Estação Primeira de Mangueira levou para a avenida o samba “História pra ninar gente grande”, que tinha o objetivo de narrar as “páginas ausentes” da história do Brasil e repensar as narrativas oficiais que foram ensinadas ao longo de gerações. No desfile, o público viu passar as histórias de protagonistas negras e negros, num samba que cantou o país, reconheceu a pluralidade que o compõe e denunciou a falsa ideia de unificação nacional e o problema da história hegemônica.

Crédito: Lucas Magalhães

Em 2023, a centralidade do pensamento negro no campo das artes visuais brasileiras, em diferentes tempos e lugares, é uma das principais premissas que guiam o processo curatorial da mostra Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro,a mais abrangenteexposição dedicada exclusivamente à produção de artistas negros já realizada no país.

Aberta em 2 de agosto de 2023, a exposição teve uma grande repercussão no âmbito das artes visuais no Brasil. Devido a isso, o Sesc Belenzinho prorrogará a exposição até 31 de março de 2024. Após este período, partes da mostra circulará em espaços do Sesc por todo o Brasil pelos próximos 10 anos.

Realizada a partir de um trabalho em conjunto de analistas de cultura do Sesc em todo o país, a exposição apresentará ao público trabalhos em diversas linguagens artísticascomo pinturafotografia, esculturainstalações e videoinstalações, produzidos entre o fim do século XVIII até o século XXI por 240 artistas negros, entre homens e mulheres cis e trans, de todos os estados do Brasil. A lista completa dos artistas participantes está disponível ao final do texto.

Pesquisas em todo o Brasil A ideia nasceu em 2018. Um projeto de pesquisa, fruto do desejo institucional do Sesc em conhecer, dar visibilidade e promover a produção afro-brasileira. Para sua realização, foram convidados os curadores Hélio Menezes e Igor Simões. Em 2022, o projeto passa a ter a curadoria geral de Simões, com os curadores adjuntos Marcelo Campos e Lorraine Mendes.

Para se chegar a esse expressivo e representativo número de artistas negros, presentes em todo o território nacional, foram abertas duas importantes frentes. Na primeira, foram realizadas pesquisas in loco em todas as regiões do Brasil, com a participação do Sesc em cada estado, com o objetivo de trazer a público vozes negras da arte brasileira. Essas ações desdobraram-se em atividades e programas como palestras, leituras de portfólio, exposições, entre outros, com foco local. Vale ressaltar que esse processo teve uma atenção para que não se limitasse apenas às capitais do país, englobando também a produção artística da população negra de diversas localidades, como cidades do interior e comunidades quilombolas.

A equipe curatorial pesquisou obras e documentos em ateliês, portfólios e coleções públicas e particulares, para oferecer ao público a oportunidade de conhecer um recorte da história da arte produzida pela população negra do Brasil e entender a centralidade do pensamento negro na arte brasileira.

A segunda frente foi a realização de um programa de residência artística on-line intitulado “Pemba: Residência Preta”, que contou com mais de 450 inscrições e selecionou 150 residentes. De maio a agosto de 2022, os integrantes foram orientados por Ariana Nuala (PE), Juliana dos Santos (SP), Rafael Bqueer (PA), Renata Sampaio (RJ) e Yhuri Cruz (RJ). A Residência, que reuniu artistas, educadores e curadores/críticos, contou ainda com uma série de aulas públicas, com a participação de Denise Ferreira da Silva, Kleber Amâncio, Renata Bittencourt, Renata Sampaio, Rosana Paulino e Rosane Borges, disponíveis no canal do Youtube do Sesc Brasil.

“Dos Brasis, enquanto projeto expositivo, se pretende uma exposição histórica, mas não tem o intuito de esgotar o debate a partir da seleção de algumas figuras artísticas, escapando assim do gesto colonialista de mapear. Além disso, o que propomos são várias formas de acesso às escritas que nos ponham em jogo, reescrevam e até invalidem nossas premissas, no intuito de concebermos um coro que não se tece apenas na harmonia, mas também no conflito e na discordância, que nos retiram da ideia de uniformidade essencializada, muitas vezes evocada para mais uma vez nos levarem nosso direito à humanidade, expressa, também, no direito à contradição”, enfatiza o trio de curadores.

NÚCLEOS

A proposta curatorial rompe com divisões como cronologia, estilo ou linguagem. Para esta exposição de arte preta, não caberá a junção formal, estilística ou estética. Dessa maneira, os espaços expositivos do Sesc Belenzinho contarão com sete núcleos – Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá – que têm como referência pensamentos de importantes intelectuais negros da história do Brasil como Beatriz NascimentoEmanoel Araújo, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzales e Luiz Gama.

“As premissas de narração cronológica, estilística ou quaisquer outros agrupamentos formais das histórias canônicas eurocentradas também não são opção. Em seu lugar, trabalhamos com a ideia de constelações: encontros, aproximações e distanciamentos entre diferentes proposições, que expõem suas particularidades e suas conexões. Sob o rótulo “arte preta” não caberá qualquer mecanismo de junção formal, estilística ou estética”, explicam os curadores.

ROMPER – Tendo como ponto de partida o pensamento da historiadora e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres brasileira, Beatriz Nascimento, o núcleo reúne artistas que, em suas produções, interrogam narrativas que cristalizaram imagens e leituras históricas feitas de tentativas de exclusão daqueles que formam a maioria deste lugar assimétrico nomeado Brasil. A história da arte nomeada brasileira faz muito mais referência à minoria numérica branca no país do que, de fato, ao Brasil.

“Nossa história da arte, que bem poderia ser chamada de branco-brasileira, funda-se sobre perspectivas de matrizes europeias, dando contornos de regra a iconografias, referências poéticas e teóricas com base no princípio da branquitude que, historicamente, aspira a um ideal de brancura que não encontra morada nem mesmo na pele de seus defensores”, argumenta o trio curatorial.

O núcleo estará representado, dentre outros nomes, por artistas como Marcus Deusdedit (MG), Mestre Zimar (MA), Yhuri Cruz (RJ), Wilson Tibério (RS) e Rosana Paulino (SP).

BRANCO TEMA – O título deste núcleo remete ao conceito “negro-tema” empregado pelo sociólogo brasileiro Guerreiro Ramos no seu livro “Patologia Social do Negro Brasileiro (1955), ao criticar a desumanização de pessoas negras nas correntes acadêmicas do século 20. Os trabalhos reunidos neste núcleo, em menor número em relação ao dos outros demais, têm um gesto em comum seguindo os curadores: “inverter a ordem recorrente das imagens do negro-tema por aquelas que versam sobre um Branco-Tema, produzidas a partir do olhar negro. Lado a lado, essas obras interrogam, denunciam e parodiam a posição social privilegiada da branquitude, outrora encarada como neutra”.

Este núcleo traz obras de nomes como Daniel Lima (RN), Davi Cavalcante (SE), Debis (MA), Pablo Monteiro (MA), entre outros.

NEGRO VIDA – Este segmento também tem no pensamento de Guerreiro Ramos sua centralidade. Para o sociólogo, Negro-Vida é comparável a um rio, ecoando a noção de devir. O negro – como humano que é – é inapreensível em perspectivas unificadoras. Diferente da existência preta nas categorias produzidas por grande parte da intelectualidade branca, a existência de pessoas negras é multiforme, singular, com rotas, escolhas, procedimentos diversos.

O núcleo reúne trabalhos de artistas como Antonio Tarsis (BA), Rubem Valentim (BA), Rommulo Conceição (BA), Li Vasc (PB), entre outros, incluindo esculturas de distintas escalas na entrada da exposição, que – segundo os curadores – “desafiam qualquer tentativa de unidade que determine as variadas produções dos artistas negros. A arte feita por pessoas pretas no Brasil é tão múltipla quanto a vida desses sujeitos. As escolhas formais, os materiais, os procedimentais não cabem no reducionismo do negro-tema”.

AMEFRICANAS – Lélia Gonzalez desenvolve a categoria político-cultural de amefricanidade, cunhando o termo Amefricanas, que nomeia este núcleo, além de situar e marcar o longo processo histórico de presença e agência de mulheres negras nas Américas. A autora entende como neurose cultural brasileira a negação da formação plurirracial e pluricultural de nossa sociedade. “É o entendimento de que vivemos em uma cultura branca que permitiu a infiltração, a influência e/ou a assimilação de traços culturais negros e indígenas”, analisa o trio curatorial de Dos Brasis.

Assim, Amefricanas reconhece a importância de intelectuais, artistas, escritoras, líderes políticas e religiosas inseridas intimamente nos movimentos culturais e sociais, mas também celebra a vida comum dessas mulheres, que, cotidianamente, performam gestos de resistência e liberdade nas imagens, representações, poéticas e autorias das Amefricanas presentes neste núcleo.

Amefricanas traz obras de artistas como Vera Ifaseyí (RJ), Hariel Revignet (GO), Sy Gomes (CE), Castiel Vitorino (ES), entre outras.

ORGANIZAÇÃO JÁ – As formas da população negra para se organizar e resistir das violências da escravidão e da colonialidade, são a base do pensamento que norteia a proposta do núcleo Organização Já, inspirado também no pensamento de Lélia Gonzales. “As primeiras formações de quilombos na Região Nordeste datam de 1559. No encontro de heranças culturais distintas, Palmares é fundada como nossa primeira república, a ser constantemente rememorada em movimentos de atualização de uma luta conjunta infindável, já que a violência racial – seja física, institucional, seja simbólica – também se atualiza”, explicam os curadores.

Os trabalhos expostos neste núcleo de artistas como FROIID (MG), Emanuely Luz (MA), André Vargas (RJ) e Joyce Nabiça (PA), traduzem lutas, sejam nos centros urbanos e ou campo, histórias de rebeliões e lutas. “Organizados na alegria e na celebração do que somos, mais do que resistir, promovemos, fabulamos e reorientamos, em uma perspectiva negra, modos de viver”, comenta o trio curador.

LEGÍTIMA DEFESA – “Todo escravo que mata o senhor age em legítima defesa”. Essa frase paradigmática dita por Luiz Gama, em 1881, atravessa a memória da população negra no Brasil. “Este núcleo mira o cânone, sublinha a impossível neutralidade do sistema da arte e sua cumplicidade com as situações que estruturam o racismo”, afirmam os curadores.

Eles prosseguem argumentando que “pessoas negras foram, por muito tempo, as únicas em empresas, em exposições, na teledramaturgia. Em muitas famílias, ainda somos ‘os primeiros a entrar na universidade’. Assim, agir em Legítima Defesa é nos mover diante desses fatos até que possamos nos dispor ao ócio, ao relaxamento”.

Paula Duarte (MG), Leandro Machado (RS), Silvana Rodrigues (RS), Gabriel Lopo (MG), entre outros artistas, integram o núcleo Legítima Defesa.

BAOBÁ  Baobá é o único núcleo que parte do título de uma obra de arte: a escultura de Emanoel Araújo, um dos mais importantes artistas da história do Brasil. Araújo defendia a ideia de que a arte afro-brasileira é produzida por quem negro for alterando a perspectiva de que essa vertente seria um tema desenvolvido por brancos.

“Aqui, reverenciamos Emanoel e outros e outras artistas e obras que continuam sendo árvore, ramificando, florescendo, frutificando e fincando raízes. O Baobá do autor é uma escultura de madeira policromada, preta, facetada por arestas em ângulos que mantêm um diálogo com os signos afrodescendentes e com a tradição construtiva da arte brasileira” ressaltam os curadores.

O núcleo reúne peças totêmicas (agrupamento de pessoas, dentro de determinada etnia que se considera de um determinado totem) de cenas rurais a arranha-céus, conectando a tradição dos santeiros de madeira, sob influência cristã e afrorreligiosa, à abstração afro-indígena. “O ferro, a cabaça, os talos do dendezeiro são apresentados por artistas que vivem em cosmodinâmica com seus materiais – artistas que jamais abandonaram o sagrado, em uma relação entre arte e vida mais complexa do que a estabelecida por perspectivas ditas universais”, comentam os curadores.

Além de Emanoel Araújo, o núcleo traz obras de nomes como João Cândido (MG), Ana das Carrancas (PE), Mônica Ventura (SP) etc.

Sobre os curadores:

Igor Simões

É doutor em Artes Visuais-História, Teoria e crítica da Arte-PPGAV-UFRGS e Professor Adjunto de História, Teoria e Crítica da arte e Metodologia e Prática do ensino da arte (UERGS). Foi Curador adjunto da Bienal 12 (Bienal do Mercosul – Curadoria do educativo). É membro do comitê de curadoria da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap), do Núcleo Educativo UERGS-MARGS e do comitê de acervo do Museu de Arte do RS-MARGS. Trabalha com as articulações entre exposição, montagem fílmica, histórias da arte e racialização na arte brasileira e visibilidade de sujeitos negros nas artes visuais. É autor da Tese Montagem Fílmica e exposição: Vozes Negras no Cubo Branco da Arte Brasileira e Membro do Flume – Grupo de Pesquisa em Educação e Artes Visuais. Tem mantido atividades na área de formação e debate sobre arte brasileira e racialização em instituições como MASP, Instituto Itaú Cultural, Instituto Moreira Salles, MAC/USP. Atualmente é curador do projeto “Dos Brasis”-Arte e Pensamento Negro” do Sesc.

Lorraine Mendes

Lorraine Mendes é graduada em Artes e Design pela UFJF, mestra em História pela mesma instituição e atualmente é doutoranda em História e Crítica da Arte no PPGAV-UFRJ, onde desenvolve sua pesquisa sobre as representações do negro e da negritude na história da arte branco-brasileira e os projetos de Nação, realizando uma revisão do arquivo de imagens que formam a ideia de Brasil a partir da agência poética negra contemporânea. Inicia-se na docência no ano de 2017, tendo sido professora substituta do Departamento de Teoria e História da Arte da EBA-UFRJ entre 2019 e 2021. Tem realizado curadorias em feiras, galerias e instituições de arte nacionais e internacionais como desdobramentos de sua pesquisa.

Marcelo Campos

Marcelo Campos nasceu, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Professor Associado do Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes da UERJ. Curador Chefe do Museu de Arte do Rio. Foi diretor da Casa França-Brasil, entre 2016 e 2017. Foi professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Membro dos conselhos dos Museus Paço Imperial (RJ); Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea (RJ). Doutor em Artes Visuais pelo PPGAV da Escola de Belas Artes/ UFRJ. Possui textos publicados sobre arte brasileira em periódicos, livros e catálogos nacionais e internacionais. Em 2016, lança Escultura Contemporânea no Brasil: reflexões em dez percursos. Salvador: Editora Caramurê, incluindo parte significativa da produção moderna e contemporânea brasileira, em um levantamento de mais de 90 artistas. Realiza curadoria de exposições, desde 2004, em diversas instituições no Brasil, com mais de cem curadorias, até o momento, dentre as quais, destacam-se: Sertão Contemporâneo, na Caixa Cultural, em 2008, Rio de Janeiro e Salvador; Efrain Almeida: Uma pausa em pleno vôo, no MAM/BA, em 2016; Bispo do Rosário, um canto, dois sertões, no Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, em 2015. Além da produção citada, as matrizes africanas e afro-brasileiras são pesquisadas em exposições, como, Orixás, Casa França Brasil, 2016; O Rio do Samba: resistência e reinvenção, Museu de Arte do Rio (MAR), 2018, Casa Carioca, MAR, 2020, Crônicas Cariocas, Museu de Arte do Rio (MAR), 2021; Um defeito de Cor, MAR, 2022. Além das citadas, curou as exposições individuais de Aline Motta, Mulambö, Bqueer, Ayrson Heráclito no Museu de Arte do Rio (MAR). Em 2018, uma grande exposição atualizou o mapeamento da região Nordeste, incluindo pesquisa e trabalho de campo em todos os estados da região, junto com os curadores Clarissa Diniz e Bitú Cassundé, resultando numa mostra de grande porte no Sesc 24 de maio, em São Paulo. Atualmente, coordena pesquisas sobre artistas afrodescendentes no Projeto de extensão, Arte e Afrobrasilidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Serviço:

DOS BRASIS – ARTE E PENSAMENTO NEGRO 

Abertura: 2 de agosto de 2023, quarta-feira, às 19h.

Período expositivo: 3 de agosto de 2023 a 31 de março de 2024
Horário de funcionamento: Terça a sábado, das 10h às 21h. Domingos e feriados, das 10h às 18h 

Acessibilidade: Rampas, elevadores, piso tátil, banheiros adaptados e outros equipamentos acessíveis.

Classificação indicativa: Livre

Entrada gratuita

Local: Sesc Belenzinho

Endereço: Rua Padre Adelino, 1000, Belenzinho – São Paulo (SP) 

Telefone: (11) 2076-9700 
 

Transporte público

Metro Belém (550m) | Estação Tatuapé (1400m) 

Estacionamento: De terça a sábado, das 9h às 21h. Domingos e feriados, das 9h às 18h

(Valores do estacionamento: credenciados plenos do Sesc: R$ 5,50 a primeira hora e R$ 2,00 por hora adicional. Não credenciados no Sesc: R$ 12,00 a primeira hora e R$ 3,00 por hora adicional.) 

FICHA TÉCNICA 

Curadoria geral: Igor Simões – RS

Curadoria adjunta: Lorraine Mendes – RJ e Marcelo Campos – RJ

Cenografia: Isabel Xavier – SP

Coordenação do projeto educativo: Janaina Machado – SP

Comunicação visual: Claudio Bueno e João Simões – SP

Iluminação: Andre Boll – SP

Produção: Ana Helena Curti – SP (Arte 3) e Vanessa Soares – SP (Movimentar)

Realização: Sesc

Site do projeto

Dos Brasis – Sesc