Santa Rita de Cássia nunca deixou de acreditar que mesmo dentro do coração do mais problemático e amargo ser humano sempre existe uma chama de amor pronta para ser acesa.
Por Fernando Savaglia
As noites de verão na Úmbria são agradáveis. A temperatura amena contrasta com o forte calor do dia. Uma leve brisa, típica das áreas montanhosas, traz alívio e torna a vida dos habitantes das cidades daquela região da Itália muito mais aprazível.
Já próximo ao nascer do sol, numa pequena casa de pedras, na diminuta vila de Roccaporena, uma mulher de seus quarenta e poucos anos está sonhando. A sensação nítida de realidade do evento lhe causa grande comoção.
“Amata, você me escuta?” Pergunta a figura luminosa e alada.
A mulher não contém as lágrimas, e com um leve manejar de cabeça responde ao anjo que sim.
“Vim para dizer que suas preces foram atendidas. Antes do próximo verão você dará à luz uma criança”, conclui a criatura celestial para, em seguida, desaparecer do sonho da mulher.
Amata desperta chorando de emoção. Seu marido, o agricultor Antônio Lotti, pego de surpresa pelo pranto da esposa, salta da cama assustado. Amata descreve a rápida e significativa experiência. Antônio, a princípio, acredita que a frustração do casal, por não ter gerado ainda nenhuma criança em muitos anos de matrimônio, anda a pregar peças na cabeça de sua mulher por meio de sonhos. Porém aquele relato, feito ainda no calor da emoção do acontecimento, parece a ele tão contundente, tão vivo de cores e certezas, que ele mesmo se deixa contagiar pela euforia da esposa.
Nos dias seguintes, sente arrepios e por vezes se pergunta se tudo aquilo se confirmará. Seus temores remetiam às tantas vezes nas quais ele havia sonhado acordado com a paternidade e se frustrado.
Suas dúvidas, que guardava só para si, eram amainadas com a disposição e alegria com que Amata se entregava às tarefas, esbanjando bom humor e cordialidade. No íntimo, ela sempre manteve a esperança. Por mais que a idade avançasse, algo lhe dizia que ainda era possível. Afinal, se havia algo que os Lotti possuíam era fé, e sempre gostavam de repetir que “Deus tudo pode”.
Mas a crença do casal não era apenas no poder supremo do Criador. Antônio e Amata eram pacificadores, isto é, buscavam aplacar o ódio e a vingança tão presentes entre as famílias rivais da região, em especial na cidade de Cássia, próxima à pequena Roccaporena.
Muito religiosos, buscavam a motivação para tal missão nas palavras de Jesus Cristo. Faziam parte, portanto, de uma ordem reconhecida oficialmente pelas autoridades de Cássia.
Como se sabe, a Itália da época não era unificada e as cidades constituíam estados autônomos, com leis exclusivas, geralmente ditadas por poderosos latifundiários. As disputas políticas entre o Sacro Santo Império Romano-Germânico e Roma, capital do Cristianismo no Ocidente, se estendiam por todo o território italiano, dividindo as cidades entre guelfos (que apoiavam um poder político centralizado no Papa) e gibelinos (a favor do Império). Definitivamente, a missão dos Lotti não era fácil. Porém, a vocação do casal em buscar a justiça e a paz seria determinante numa nobre missão que estava por vir.
Antônio acompanhou com enorme satisfação as rápidas mudanças da silhueta de Amata, até que num belíssimo dia na primavera de 1373, exatamente como havia dito o anjo no sonho da esposa, uma linda menina nasceu, enchendo-lhe o peito com uma sensação jamais experimentada antes. Seu amor pela criatura era inversamente proporcional ao tamanho da pequenina de olhos negros.
Apesar de todos os prognósticos de complicações por causa da idade de Amata, o parto foi abençoado, sem nenhuma complicação.
Cinco dias após o nascimento da menina, a família percorreu, com uma caravana de amigos e parentes, a pequena distância que separava Roccaporena de Cássia.
Na cidade, se dirigiram para a Igreja de Santa Maria do Povo. Lá, foram recebidos por um padre de nome Pelosi. A pequenina de olhos vivos foi batizada de Margherita, como a bela flor do campo.
Dias após seu batizado, a menina foi personagem principal de um pequeno prodígio, acontecido próximo à sua morada. Ao lado de um riacho, Antônio e Amata recolhiam frutos enquanto a criança descansava num cesto sob a proteção da sombra de uma árvore e do olhar dos pais.
Um amigo do casal rachava lenha ali perto quando, num descuido, acabou por cortar a mão. Seu grito chamou a atenção de Antônio e Amata, que não atentaram para um enxame de abelhas brancas circundando o berço da menina. O lenhador percebeu a movimentação dos insetos e correu para afastar as abelhas, acreditando que estas iriam fazer mal à pequena. Pôs-se a agitar os braços freneticamente, e se deu conta da algo extraordinário. A menina não só não foi atacada como parecia se divertir com as pequenas abelhas, algumas depositando mel em sua boca. Mais espantado ficou ainda ao perceber que seu ferimento havia desaparecido por completo.
Enquanto os Lotti levavam uma vida relativamente tranquila com seus afazeres como agricultores, a cidade de Cássia fervilhava num violento jogo político.
Se levarmos em consideração a truculência da região na época, é possível se dizer que Marguerita, carinhosamente chamada pelo apelido de Rita, foi duplamente abençoada. Seus pais, além de amorosos, buscavam sempre a justiça acima de tudo, vislumbrando soluções de conflitos embasadas no diálogo e no imenso respeito à vida, algo muito pouco valorizado na época.
Enquanto famílias eram dizimadas membro a membro, gerações após gerações, por vinganças que se repetiam num ciclo aparentemente infindável, os Lotti construíam uma relação calcada no afeto que serviria como estrutura para todas as realizações de Rita durante a sua vida. A certeza do amor dos pais era para a pequena a representação na Terra do infinito amor de Deus. Ao que parece, para a missão que haveria de cumprir, Rita não poderia ter nascido em lar melhor.
Aos poucos a personalidade da menina foi sendo forjada, em parte pela mensagem de paz transmitida pelos pais, em parte por características inatas, como a perseverança e a inteligência, ambas observadas desde os seus primeiros anos. Quando era contrariada, Rita se mantinha quieta analisando a situação para depois argumentar invariavelmente de maneira tão brilhante, que era capaz de deixar atônito qualquer adulto que tentasse travar algum debate com a pequena. Essa precocidade lhe valeu muita simpatia dos habitantes de Roccaporena.
Acostumada desde jovem a observar a devoção dos pais, a pequena filha dos Lotti demonstrava muito interesse na religião. Aos poucos, sua curiosidade foi se transformando num profundo amor por Jesus Cristo. O fato de seus pais terem-na ensinado a ler e a escrever lhe permitiu estudar com afincoo Livro Sagrado. Algumas passagens de Mateus e Lucas a emocionavam sobremaneira e prestava devoção a três Santos em especial: Santo Agostinho, São João Batista e São Nicolau de Tolentino. Aos poucos começou a se sentir compelida a seguir a vida eclesiástica.
Um fato ocorrido no início de sua adolescência também contribuiu para sua disposição de tornar-se religiosa. A pequena casa dos Lotti em Roccaporena possuía um sótão. Lá, naquele diminuto aposento, que contava com uma pequena janela, Rita se isolava para rezar e meditar. Certa vez, durante uma oração, entrou em êxtase. Tal fenômeno se repetiu outras vezes durante sua vida. Durante aqueles momentos que se encontrava entre o sonho e a realidade, recebeu a visita de um anjo. A visão lhe pareceu um presságio de que a vida dentro de um convento em algum momento seria um caminho a seguir. Aos poucos, passou a frequentar, com a aquiescência da Madre Superiora, o Convento das Agostinianas de Santa Maria Madalena. Lá, como voluntária, auxiliava os pobres e doentes de Cássia.
Os Lotti não pertenciam à nobreza. Não se pode dizer também que eram abastados. Por outro lado, gozavam de um bom rendimento que lhes garantia certo conforto. A amizade que tinham pelos membros de sua pequena comunidade lhes valia tanto quanto ouro, como gostava de dizer Antônio.
Rita ia crescendo dentro de uma condição privilegiada. O respeito que os pais haviam conquistado como pacificadores de alguma maneira a protegia da violência que grassava em Cássia. Porém, o fato de até então nunca ter se envolvido em nenhum evento trágico não tornava os conflitos invisíveis ao seu observador olhar. Aos poucos, a graciosa criança foi se transformando numa belíssima moça. Na adolescência, ruborizava com o olhar dos rapazes. Ainda assim, no íntimo, ficava alegre com os elogios que escutava sobre sua beleza. Apesar de ser de baixa estatura, suas feições simétricas, seus cabelos loiros, seus belos olhos vivos e seu fino e arrebitado nariz lhe davam uma graciosidade difícil de passar despercebida.
Às vezes, inquietava-se por perceber que sua disposição por seguir a vida religiosa arrefecia diante da possibilidade de ter uma família e ser mãe. Esses conflitos, tão comuns aos adolescentes, se intensificaram quando Rita, aos doze anos, passou a ser cortejada por um certo Paulo Fernando. O rapaz, que carregava o sobrenome dos Mancini, poderosa família de Cássia, sentiu uma atração imediata, logo na primeira vez em que a viu.
A princípio, a adolescente se sentia constrangida com a aproximação do rapaz, sete anos mais velho que ela. Mesmo sendo respeitoso, o cortejar do jovem era um tanto bruto. Os pais da moça não se opunham ao namoro. Não escondiam que olhavam com simpatia a possível união. Acreditavam que no dia em que faltassem, a filha estaria amparada por um homem pertencente a uma família de posses. Paulo não era romântico, mas deixava transparecer que realmente a amava. Isso trazia alento a Antônio e Amata, que acreditavam que seu maior tesouro estaria em boas mãos.
Ele também não era religioso. Às vezes debatiam sobre o tema. Entretanto, nunca houve desrespeito entre ambos.
Observadora, Rita captava no desajeitado flerte a repressão de quem fora criado numa família que, se por um lado possuía posses, por outro não externava o afeto nem em palavras nem em gestos. O esforço, quase sempre atrapalhado, do moço para comunicar sua paixão, começou a parecer a ela algo simpático.
Rita descobriu um traço de doçura e humanidade latente em seu pretendente.
Por baixo de toda aquela rudeza, ficou claro para ela que Paulo tinha a capacidade de amar.
Antônio, percebendo que a filha aos poucos passava a se afeiçoar ao rapaz, permitiu o namoro e o noivado.
O casamento aconteceu quando ela completou catorze anos. A cerimônia foi realizada na Igreja de San Montano, e segundo as leis vigentes na época, não houve ostentação. Parentes e amigos brindaram a união com vinho.
Rita se mudou para uma pequena casa ao lado de um moinho, de propriedade da família do marido. Mesmo morando perto dos pais, ainda assim, demorou a se adaptar à nova vida.
Aos poucos, um triste traço da personalidade do esposo foi se fazendo presente.
A família Mancini era poderosa e influente. Latifundiários, possuíam forte ascendência sobre a política da região. Como era usual na época, comandavam um pequeno grupo de mercenários pagos para guerrear contra facções inimigas. Suas disputas eram contra donos de terras de outras cidades e contra camponeses que se recusavam a pagar os altos impostos instituídos arbitrariamente pelos donos das propriedades. Não raro, as disputas se estendiam contra outras famílias da própria cidade.
As alianças políticas eram frágeis e variavam de acordo com os interesses dos poderosos de Cássia. Na época em que Rita e Paulo se casaram, os Mancini haviam selado um acordo com os Cecchi, família com quem rivalizavam há anos. Pelo trato, firmado entre os respectivos patriarcas, as tropas de ambos os clãs deveriam correr em socorro do outro, sempre que a honra de algum deles fosse profanada.
Paulo, e seu irmão mais velho, Bernardo, comandavam a tropa dos Mancini. Muitas vezes, durante as noites, faziam ataques contra fazendas que pertenciam aos rivais. Esses atos violentos eram chamados de cavalgadas. Sem exceção, os ataques eram retribuídos com represálias não menos brutais, que acabavam por alimentar um ciclo interminável de vinganças. Paulo já havia participado de muitas cavalgadas, atacando muitos homens em nome do que acreditava ser a “honra” de sua família.
Por pertencer ao clã Mancini, Rita desconfiava das atividades do marido. Porém, não tinha certeza de nada. Ainda que frouxa, existia uma lei que condenava tais práticas. Tudo era feito, portanto, de maneira a esconder os autores dos ataques. Além disso, a filha dos pacificadores sempre teve esperança de que as qualidades que ela aprendeu a amar no esposo se sobrepusessem às suas terríveis desconfianças. Para ela, aquele homem que lhe dava amor dentro de casa seria incapaz, apesar da rudeza, de tirar a vida de alguém.
Os primeiros meses de casamento foram de adaptação. Apesar dos eventuais e misteriosos sumiços de Paulo Fernando em algumas noites, aos poucos Rita foi se acostumando com sua nova realidade. Devido à sua criação, a filha dos Lotti não podia ser enquadrada como a esmagadora maioria das mulheres casadas de seu tempo. Apesar de respeitar seu marido, não era tão submissa como as outras esposas. A antipatia da família de Paulo por ela vinha desse fato. O pai e os irmãos do marido de Rita estavam acostumados a tratar suas mulheres de maneira machista e com desprezo pelo que pensavam.
Quando estava casada havia dois anos, Rita teve que enfrentar pela primeira vez a dor da perda de um ente querido. Sua mãe, Amata, adoeceu repentinamente, e faleceu nos seus braços, numa manhã de muita tristeza para a filha. Menos de um ano depois, foi a vez de Antônio, que após a morte da esposa havia perdido, na opinião de amigos e parentes, o gosto pela vida. Foi sepultado no pequeno cemitério atrás da igreja de San Montano.
Apesar de ter acusado o golpe, Rita possuía algo que lhe trazia alento. De alguma forma, sabia que Antônio e Amata continuariam vivos em sua vocação para buscar o entendimento entre os homens. Tinha total confiança, ainda, que eles estariam sempre com ela através do que de mais belo lhe ensinaram, o amor e o respeito a Deus.
Morte e nascimento. O ciclo natural da vida é dono do admirável poder da renovação. O triste período, marcado por perdas tão significativas, teve fim com a certeza que levava no ventre uma criança. A dor da perda transformou-se em saudade, e a natureza se encarregou de aplacar de alguma forma todo o sofrimento causado pela morte dos pais.
Foi com alegria que Paulo Fernando escutou da mulher a notícia de que estava grávida. O nascimento dos gêmeos, João Tiago e Paulo Maria, encheu de felicidade o lar do casal. Rita voltou a sorrir novamente e, com a vinda dos filhos, viveu aquele que considerou o mais radiante momento de sua vida.
As crianças cresceram saudáveis e conseguiram promover, ainda que timidamente, uma reaproximação de Rita com os Mancini. Os tios eram sempre bem-vindos na casa do moinho e, pelo menos uma vez por semana, os meninos visitavam os avós em Cássia. Apesar de não aprovar os jogos e as brincadeiras belicosas que os tios ensinavam para seus filhos, nunca se opôs à convivência. Afinal, eles carregavam o sangue do pai.
Porém, quanto mais percebia o amor de Paulo pelos meninos, mais os rumores sobre as “cavalgadas” deixavam-na angustiada. Em suas orações perguntava a Deus se seria possível que ela, que tanto valorizava a vida, tivesse se casado com um assassino.
A terrível suspeita se confirmou numa noite em que Rita acordou sobressaltada e percebeu a ausência do marido. Preocupada, e com um péssimo pressentimento, não conseguiu mais adormecer. Quase ao raiar do dia, Paulo chegou com a roupa toda ensanguentada e visivelmente perturbado. Abaixo do olho esquerdo um grande hematoma comprovava o embate corporal no qual se envolveu. Mesmo tendo a certeza da resposta, e fazendo um esforço sobre-humano para se manter centrada, Rita perguntou onde ele esteve. Paulo, tentando esconder seu nervosismo disparou, “Isso não é assunto para mulheres, vá dormir”.
Rita explodiu. Chorando, perguntou lhe onde estivera e no que se envolvera. “Você matou alguém?”, perguntou. Paulo fez menção de esbofeteá-la. Corajosa, Rita deu um passo à frente oferecendo o rosto. Paulo brecou o movimento de seu braço. E esbravejou. “Você é muito ingênua. Acredita no amor entre os homens. Esta é um lugar onde apenas os mais fortes sobrevivem!”
Olhando no fundo dos olhos cheios de ódio do marido, Rita rebateu, “E para o senhor, o que a palavra ‘forte’ significa?”
Após alguns segundo de tenso silêncio, a filha dos Lotti prosseguiu, “Assassinar pais de família em emboscadas é algo digno dos fortes?”
Paulo novamente fez o movimento de agredi-la e disse, “Cale-se, ou…”.
Rita, não recuando um centímetro, o afrontou, “Ou o quê? Vai fazer valer sua coragem em mim, do mesmo jeito que deve ter feito com algum infeliz que ousou não ter a mesma opinião que os Mancini ou os Cecchi? O que você vai fazer depois? Vai me matar com sua espada para provar que você é forte?”
As palavras de Rita caíram como uma bomba sobre Paulo. De repente, sua miserável realidade foi exposta pela única pessoa em quem ele realmente confiava na vida.
De alguma maneira ela o havia tocado. Descerrava-se uma porta até então desconhecida para ele, a da vergonha e do arrependimento. De repente, todos aqueles rostos dos homens abatidos sob a lâmina de sua espada desfilaram na sua frente. Imediatamente, a crença de que aquelas mortes eram nada mais que sua obrigação se dissolveu, e elas passaram a lhe pesar como assassinatos. Paulo percebeu que nada mais fora até então do que um mero fantoche da violência irracional defendida por sua família. Por um instante, esteve a ponto de machucar a quem mais amava. Ajoelhou-se perante ela e, como uma criança, chorou abraçado às pernas da esposa.
Rita, percebendo a aflição do marido, acolheu seu desespero. Agradeceu a Deus por poder ter aberto seus olhos e ouviu de Paulo algo estarrecedor, “Foi meu pai quem me ensinou a matar. Tinha doze anos, idade de nossos filhos, quando fui obrigado a apunhalar um camponês que se recusava a pagar os impostos. Tive medo de matá-lo, porém a veemência de meu pai e minha necessidade de provar que era corajoso para ele…”. Paulo não completou a frase; passou a soluçar convulsivamente. Em meio ao seu desespero, acrescentou, “No dia seguinte, meu pai me chamou e disse que estava muito orgulhoso de mim. Que não havia do que me envergonhar, pois tínhamos feito a justiça prevalecer. No entanto, o olhar daquele camponês me persegue até hoje. Depois dele, foram muitos”.
Ela percebeu que por trás daquela suposta fortaleza existia uma enorme culpa. O fato de ele ter a coragem de enfrentá-la trazia uma pequena esperança a ela.
“Prometa-me que você jamais vai voltar a matar”, disse Rita encarando-o.
“Prometo”, respondeu Paulo. Rita o abraçou como uma mãe.
A princípio, Paulo tentava se esquivar das reuniões entre os clãs Mancini e Cecchi, que aconteciam regularmente para traçar as estratégias de ataques contra aquelas que consideravam facções inimigas. Suas desculpas começaram a se repetir de tal maneira que, passados meses da noite em que se confrontou e prometeu a si mesmo que jamais tornaria a ferir alguém, não coube ao marido de Rita outra alternativa a não ser comparecer a uma das malfadadas assembleias na casa dos Cecchi, em Cássia. Ao chegar, Paulo foi vítima do olhar inquisidor de seu pai. Após horas de confabulações em que Paulo não abriu a boca, ficou combinada uma emboscada para a noite seguinte contra um grupo de camponeses considerados rebeldes. Perguntado se concordava com o plano de ataque contra as pequenas fazendas, o marido de Rita engoliu em seco.
“Penso que poderíamos tentar resolver nossas questões com essa gente de maneira menos violenta”, disse, para espanto geral.
Seu pai o fuzilou com o olhar. Paulo prosseguiu com voz trêmula. “Não será matando esses homens que vamos ter os impostos a que acreditamos ter direito”.
O patriarca dos Cecchi, dando um murro na mesa, vociferou, “Não é uma questão de dinheiro. Esses camponeses seguem ordens dos Antonelli, estão mancomunados com essa corja de gibelinos. A questão é política e não financeira. Precisamos dar uma lição para que nunca mais sejamos afrontados”.
Com o pensamento voltado para Rita e seus dois filhos, Paulo retrucou, “Não contem comigo. Não quero mais participar de nenhum ataque”. E se retirou sem olhar para o pai.
Cecchi se voltou para o patriarca Mancini e perguntou de maneira desafiadora, “Devo encarar esta deserção como o fim de nossa aliança?”
O pai de Paulo Fernando respondeu, “meu filho está sob má influência. Continuo aqui ao seu lado com meu primogênito e meu caçula”.
Bernardo pediu licença e correu atrás do irmão. Ao alcançá-lo interpelou de maneira agressiva, “Você enlouqueceu? Aposto que essas são ideias de sua mulher”.
Paulo então disse, “estas, irmão, são ideias de Deus, nas quais minha esposa sempre acreditou. E o fato dela acreditar apenas reforça em mim a certeza de que finalmente encontrei o caminho certo”.
Bernardo, simulando uma gargalhada sarcástica disparou, “Então é isso. Você está se tornando um fanático religioso”?
Foi a vez de Paulo rir com ironia, “Fanático, eu? Quem é que estava até a pouco criando estratagemas para tirar a vida de pais de família sem, no entanto, refletir sobre seus atos? Quem cumpriu ordens sem questionar as reais intenções de quem as criou. Bernardo, há anos você mata sem mais lembrar os motivos”.
O olhar de confrontação entre os irmãos enchia a noite de Cássia de tensão.
“Estamos em guerra”, replicou Bernardo.
“Eu, não mais”, disse Paulo, pondo um fim à discussão. Montou seu cavalo e seguiu caminho para junto de sua família.
Eram gêmeos. No entanto possuíam personalidades distintas. João Tiago havia puxado a mãe. Sensível, observador e disposto sempre a buscar a reconciliação nas ocasiões em que discutia com o irmão. Não levava tão a sério o perder ou ganhar nos jogos, sábia que tudo aquilo não passava de brincadeiras. Paulo Maria lembrava em alguns momentos os Mancini. Não suportava perder, e às vezes Rita percebia que dava importância demasiada às disputas com João.
Porém, não foram poucas as vezes que em que o viu defender o irmão de alguma bronca do pai devido a alguma traquinagem que por vezes aprontavam. Eram inseparáveis e amavam a natureza como a mãe. Certa vez, ainda pequenos, vieram correndo chamá-la para ajudá-los a recolocar um filhote de pássaro num ninho, porque havia caído de uma arvore próxima de onde brincavam. Esse ato singelo encheu Rita de alegria. Comprovava a boa índole dos meninos, apesar do temperamento explosivo de Paulo Maria vir à tona algumas vezes.
Mesmo antes de sua conversão, Paulo Fernando nunca se opôs que Rita ensinasse e incutisse aos garotos valores religiosos. Numa noite, perguntado sobre a razão de terem seus tios deixado de visitá-los e porque há tempos não visitavam mais os avós, Paulo passou a explicar aos garotos suas razões. Disse-lhes, ainda, que apesar de tudo, pertenciam a família Mancini e que tinha grande esperança que um dia pudessem voltar a se sentar todos juntos numa mesma mesa.
Coincidentemente, Paulo foi chamado por seu pai, naquela noite, para conversar. Surpreendeu-se ao chegar à casa de sua infância e encontrar, além do pai, a figura repugnante do patriarca dos Cecchi, acompanhado de seu primogênito.
“Paulo”, disse o pai, “resolvemos dar a você mais uma chance para se redimir de seus atos. Amanhã vamos acertar contas com os Antonelli e queremos que você nos acompanhe”.
Irritado, o marido de Rita rebateu, “Eu é que espero que vocês tenham a chance de se redimir perante Deus algum dia. Além do que, meu pai, aniquilar a família Antonelli parece ser muito mais um desejo dele do que nosso”, falou apontando para o velho Cecchi.
Desta vez, sua recusa soou como a mais pura afronta para o homem que se dizia aliado político de sua família.
Passados alguns dias do ocorrido, Paulo já havia retomado seus negócios no pequeno moinho. Tendo que buscar provisões no centro de Cássia, montou em seu cavalo e se dirigiu à cidade vizinha. Já era noite quando começou a jornada de volta. A cerca de duzentos metros de casa, num local onde a pequena trilha fazia uma curva por trás de grandes árvores, o marido de Rita foi emboscado por cinco homens mascarados. Paulo, desarmado, antes que pudesse sequer pensar em fugir foi apunhalado diversas vezes. Antes do último golpe, percebeu nos dedos da mão de seu oponente o anel que identificava os Cecchi. Foi abandonado ainda com vida na trilha. Conseguiu se arrastar algumas centenas de metros, chegando perto de sua casa. Rita, ao ouvir o distante tropel, acreditou que algo de ruim poderia estar acontecendo e saiu em disparada ao seu encontro. Ainda o encontrou com vida.
Em seu desespero, perguntou a Deus a razão daquela fatalidade. Logo agora que seu marido havia aceitado seguir seu caminho junto a Ele, amparado pela sua Sagrada Palavra. Paulo, em seus últimos suspiros, contou a ela quem foram os homens que armaram a emboscada. Pediu que ela tentasse manter os filhos longe do conflito entre as famílias, o que com certeza estava por acontecer. Morreu nos seus braços. A mais longa noite da vida de Rita estava apenas começando.
A violenta morte de Paulo deixou Rita arrasada. Teve, ainda, que enfrentar o mais terrível dos sentimentos com que um ser humano se defronta na vida. A filha dos pacificadores Antônio e Amata, várias vezes se percebia odiando os assassinos do pai de seus filhos.
Rita acreditava que enquanto o segredo de quem havia assassinado seu marido estivesse guardado com ela, os meninos estariam a salvo. Tinha esperança de que o tempo aplacasse a revolta deles. Quando os garotos perguntavam a ela se desconfiava quem foram os assassinos do pai, ela desconversava.
Seu sofrimento aumentava toda vez que precisava se confrontar com a raiva. Para piorar, toda vez que era tomada pelo ódio, não se sentia digna do amor dos pais, de Paulo e dos filhos.
Durante o velório de seu marido experimentou enorme angústia. Sentiu-se compelida a confrontar seu sogro e cunhado, acusando-os de ser, de alguma maneira, os responsáveis pelo trágico acontecimento. Porém, sua indignação chegou ao limite ao ver Guido Checci adentrar na sala de sua casa e, cinicamente, fingir consternação pelo assassinato de seu esposo. O mandante do crime se aproximou de seu sogro e, falando alto e em tom dramático, garantiu ao pai de Paulo que quem havia feito aquilo iria pagar caro, muito caro. Um terrível pressentimento tomou conta de Rita. Ela percebeu que todo aquele teatro nada mais era do que o prelúdio de um ciclo de mortes e vinganças que estava por se iniciar entre as duas famílias.
A filha de Antônio e Amata, os pacificadores, sabia que cabia a ela tentar interromper o processo, antes que seus filhos fossem envolvidos. Perder Paulo assassinado já era demais doloroso. Perder ou permitir que os filhos se envolvessem em alguma morte seria, para ela, uma dor ainda pior, se possível, do que aquela aflição devastadora que estava sentindo. Com voz embargada, falou em alto e bom som, “Deus sabe o quanto estou sofrendo. Amei este homem o máximo que uma esposa poderia ter amado um marido. No entanto, perdoo os assassinos de Paulo. Rezo pelas suas almas e para que obtenham a graça de se arrepender do mal causado a mim e aos meus filhos. Vou orar para que esta morte não alimente mais o ódio que existe nesta cidade”.
Rita estava fazendo sua parte, mas sabia que, pelas leis vigentes na região, seus filhos teriam que vingar a morte do pai e, pior, os Mancini iriam tentar influenciar os meninos, para que estes o vingassem.
Rita nunca simpatizou com seu cunhado e com seu sogro. Não compreendia, também, a total submissão de sua sogra e cunhadas na casa dos Mancini. Reconhecia, contudo, que avós e tios nutriam grande estima pelos gêmeos.
No entanto, temendo pela influência maléfica, carregada de ódio pelos Cecchi, ela procurou ao máximo afastar os adolescentes da família do marido. Suas tentativas foram em vão. Sozinha no mundo com os dois meninos, com a lei de Cássia dando respaldo aos poderosos, Bernardo, o irmão mais velho de Paulo, passou a exercer forte ascendência sobre os garotos. Numa tarde, Rita flagrou o cunhado instigando os meninos à vingança pela morte do pai. Iniciou-se uma ríspida discussão entre os dois, tendo os gêmeos como testemunhas. “Bernardo, você não tem o direito de vir até minha casa para lhes encher os corações de ódio. Eles são meus filhos, e os quero vivos”.
A morte do irmão em nada havia arrefecido a amargura que Bernardo sempre carregou. Ao contrário, desde o assassinato de Paulo, seu ódio e sede de matar davam a ele feições transtornadas. “Vivos? Eu também os quero vivos. Mas, para isso, é necessário que eles vinguem o pai, incutindo o medo nos inimigos e os aniquilando, antes que eles nos varram da face da Terra”. Os garotos pareciam perdidos no embate. Usando de extrema má fé, o cunhado de Rita a acusou de mentir aos filhos. “Perguntem a sua mãe quem assassinou vosso pai”.
Os meninos olharam atônitos para Rita, “Você sabia mãe?” Perguntou Paulo Maria. Rita concordou com um leve aceno de cabeça, envergonhada por ter mantido aos filhos, coisa que jamais havia feito. Magoados, os meninos resolveram acompanhar o tio até a casa dos Mancini. Bernardo havia conseguido seu intento.
Já era noite quando o velho Cecchi saiu de sua casa. À espreita, Bernardo desconfiou do comportamento descuidado, já que ele estava desacompanhado. Ainda assim, sentiu que era o momento. Paulo Maria e João Tiago, ao lado do tio, estavam muito assustados. Com um sinal de cabeça de Bernardo, dois homens saíram das sombras como um raio e derrubaram o velho no chão. O tio levou os sobrinhos até Cecchi que, imobilizado, encarou Paulo Maria. Chegara a hora da vingança. Porém, antes que o tio desse a fatídica ordem aos garotos, uma dúzia de capangas de Cecchi, fortemente armados, cercaram Bernardo, seus homens e os filhos de Rita. O Mancini era bom espadachim, e conseguiu abrir caminho entre os inimigos, protegendo os meninos. Montaram em seus cavalos e fugiram em disparada. Seus homens não tiveram a mesma sorte.
A guerra estava declarada. Cecchi continuava vivo e agora tinha certeza de que os Mancinis sabiam de seu envolvimento na morte de Paulo. O fato dos filhos de sua vítima quase o terem matado não surpreendia o velho. Assim era a lei que regia a faida (vingança). Os Mancinis sabiam também que, agora, os meninos seriam os principais alvos dos Cecchis. O jogo de gato e rato estava apenas começando. O pai de Paulo, percebendo o enorme risco que os netos passaram a correr depois da fracassada tentativa de eliminação de seu agora declarado inimigo, insistiu que Bernardo escondesse os garotos em algum lugar fora da cidade. Por seu lado, Cechi instruiu seu filho, que comandou o atentado contra Paulo, a fazer o mesmo com seu neto de apenas dez anos. Era preciso protegê-lo dos Mancini.
O tempo passava e o desespero de Rita só aumentava. Seu coração estava cheio de angústia, pois há dias não tinha informações sobre os filhos. Certa manhã, abordou seu sogro na rua e implorou para que este lhe contasse o paradeiro dos meninos.
O velho Mancini se recusou, alegando que seria melhor para os netos que ela não soubesse onde se escondiam. Mas a tranquilizou, dizendo que estavam vivos.
Desolada, Rita retornou ao convento de Santa Madalena, onde ajudava a cuidar dos doentes. Essas atividades diárias lhe garantiam a sanidade diante da dor desesperadora de não saber aonde e como estavam os gêmeos. Pediu ajuda a Deus para encontrá-los. No final da tarde, uma monja do convento veio ter com ela, “Rita, de manhã, um mercador a quem atendi disse ter visto seus filhos”. Sobressaltada, a mãe desesperada quis saber aonde. Baixando os olhos em sinal de lamento, a irmã agostiniana explicou que João Tiago e Paulo Maria foram vistos num antigo hospital a dois dias de viagem de Cássia, que atendia pessoas acometidas pela peste. Rita sentiu uma punhalada no coração. Sabia da gravidade da doença. Aquilo tudo lhe parecia um grande e interminável pesadelo. Tomada de ansiedade, partiu imediatamente ao encontro dos filhos.
O velho hospital, próximo à cidade de Espolleto, também possuía como mantenedoras monjas agostinianas. Essa ordem religiosa possuía bastante presença na Úmbria. Rita encontrou os meninos em estágio avançado da doença. Tentava, diante deles, parecer forte e esperançosa. Desvelava-se nos cuidados e na tentativa de aplacar os sintomas da terrível enfermidade.
No dia seguinte ao que os encontrou, Paulo Maria, aquele que mais a repreendeu no episódio da discussão com Bernardo, pediu que o perdoasse. E garantiu, para alívio da mãe, que mesmo que lhe fosse possível, não teria levado a cabo a execução do assassino do pai. Debilitado e com um fiapo de voz, disse, “Por meses, tive vontade de fazê-lo. Mas, naquele momento, quando ele olhou no fundo dos meus olhos, senti pena de sua condição e entendi perfeitamente o que você e meu pai falavam sobre tirar a vida de alguém”. Emocionada, Rita não escondeu o choro. Paulo Maria passou a mão em seu rosto e, dando um último suspiro, se foi.
Horas depois, foi a vez de João Tiago falecer. Rita sentiu uma dor que nunca havia sentido. Seu sofrimento não era exprimível em palavras. Desnorteada, sentia carregar sobre os ombros toda a solidão do mundo. Depois de enterrar os meninos, partiu de volta a Cássia. Amortecida por tanto sofrimento, buscou abrigo no Convento de Santa Maria Madalena. Lá, foi recebida com afeto pelas monjas. Porém, a dor era maior que qualquer sentimento. Indagava por que Deus não a havia levado. A superiora do convento, que a conhecia desde pequena, disse a ela que tinha certeza de que o criador havia acolhido seus entes queridos. “A você, minha querida, cabe aceitar, e buscar forças para continuar vivendo e servindo a Ele”.
Em desespero, Rita desabafou, “às vezes, sinto que Ele me abandonou”. A madre disse-lhe que nada nem ninguém poderiam afastar Deus de nossos corações. Porém, a filha dos Lotti revelou à religiosa toda a culpa que sentia. “Não consegui cumprir com o que prometi a Paulo, antes dele morrer. Sinto-me culpada por não ter protegido meus filhos de tudo. Não mereço sequer ser consolada”. Entre soluços, Rita pediu à Madre que a aceitasse como noviça. A freira agostiniana disse que não poderia concordar com isso enquanto percebesse nela aquela autopiedade. “Só posso acolhê-la quando acreditar que você encontrou sua vocação para a vida que levamos aqui dentro. No momento, percebo que você é pura culpa e dor. Para que possa se juntar a nós, é preciso que você reencontre a fé em Deus e nos homens”.
Naquela altura, a recusa da Madre pareceu a Rita uma conspiração contra sua sanidade. Porém, não lhe restou alternativa a não ser retornar à casa do moinho e confrontar sua dor.
Durante os meses seguintes à morte dos filhos, a viúva de Paulo Mancini se entregou. Acreditava que jamais poderia voltar a amar. Sua dor estava impressa no seu rosto e no seu corpo esquálido. Rita havia desistido da vida. Passava o máximo de horas possíveis a vagar sem rumo pela cidade. Buscava ficar distante da casa na qual tantas recordações evocavam a longínqua época em que se sentia feliz com a família.
Numa manhã, a superiora do convento de Santa Maria Madalena a procurou. Ficou impressionada e penalizada com seu aspecto. Veio oferecer consolo. Ao final da visita, Rita novamente suplicou-lhe que a aceitasse como noviça. Intuitivamente, a feira percebeu que se a aceitasse naquele estado, estaria apenas compactuando para que ela se fechasse ainda mais em sua dor. Acreditava que seu objetivo de se juntar às agostinianas estava vinculado apenas à necessidade de fugir da dura realidade em que se encontrava. Por mais desesperada que estivesse, a freira acreditava que Rita teria que provar seu amor por Deus, amando-se. Negou a Rita, pela segunda vez, o pedido.
Havia meses que a filha dos Lotti não rezava. Não se sentia pronta para restabelecer seu canal de comunicação com Deus.
Para ela, havia dois períodos do dia que eram os mais sofridos. Ao acordar pela manhã, e perceber que realmente tudo aquilo havia acontecido, e o entardecer. Naquele início de noite, após muito tempo, Rita se ajoelhou na frente do crucifixo. Pediu a Jesus Cristo que a levasse ou que a ajudasse a reencontrar a motivação para viver. Enquanto rezava, foi tomada por um irresistível sono. Deitou-se e imediatamente adormeceu.
Na manhã seguinte acordou sentindo que deveria ir ao centro de Cássia. Algo a atraía para lá. O céu carregado era sinal de uma tempestade que se aproximava. No caminho, cruzou com algumas carroças carregando corpos de pessoas mortas pela peste. As ruas da cidade estavam praticamente vazias. De repente, um grito vindo do segundo andar de uma pequena casa de pedras lhe chamou a atenção. Subiu as escadas e se deparou com uma jovem mulher grávida que dava à luz solitariamente seu bebê. Percebendo toda a angústia da jovem naquele momento, se prontificou a ajudá-la, esquecendo por instantes sua própria dor. O parto foi complicado. Rita se empenhava ao máximo para ajudar a mãe e a criança. Finalmente, depois de sofridas horas, para alívio das duas mulheres, um menino veio ao mundo. A mãe, com um olhar e um sorriso de agradecimento, acolheu seu pequeno nos braços e adormeceu.
Extenuada, Rita adormeceu ao lado da cama. Quando acordou, se pôs a olhar para aquela minúscula e indefesa criatura que acabara de chegar ao reino dos homens. Dormindo, protegida pelo abraço da mãe, mal ela suspeitava o que lhe aguardava. Nascer naquela cidade onde violência, vingança e doenças grassavam, não era o mais convidativo dos cenários para vir ao mundo. Tomada de imensa ternura pelo pequeno, Rita sentiu que o amava imensamente, assim como aquela corajosa mãe, que possivelmente morreria se ela lá não estivesse.
De repente, começou a despertar de seu pesadelo. Sentiu-se motivada de novo a trabalhar para que a pureza daquela criança e de todas as outras de Cássia, pudessem ser preservadas naquele mundo violento. Percebeu que ao lutar pela vida de mãe e filho, podia lidar melhor com a morte de seus entes queridos. Nada lhe traria seus amados de volta, mas poderia honrar suas memórias levando esperança aos que estavam vivos.
Olhou-se num pequeno espelho. Percebeu o quanto todo o sofrimento e a renúncia ao amor próprio haviam causado em sua aparência. Após assegurar-se de que mãe e bebê passavam bem, voltou para casa. Depois de meses sombrios, o caminho de volta lhe pareceu bem mais familiar.
Era preciso dar um basta àquelas mortes inúteis. Rita, após reencontrar um sentindo para sua vida, se pôs a engendrar uma maneira de fazer as famílias Mancini e Cecchi se reconciliarem. Com a morte do pai de Paulo, Bernardo se mostrou um homem muito mais vingativo do que seu ex-sogro. Seria uma difícil tarefa; porém, contaria com um forte aliado, que nunca a abandonou, mas que agora, ela permitia de novo que se aproximasse.
Numa manhã, chegando ao centro de Cássia, percebeu uma grande agitação. Ludovico, primogênito de Guido Cecchi, tinha sido cercado pelos homens de Bernardo. Rita se colocou entre os agressores e o filho do algoz de Paulo. Receoso de feri-la, Enzo Piovanni, comandante da ação e amigo de infância de Paulo, suspendeu o ataque. A manobra deu tempo a Ludovico de fugir para a casa do pai, onde buscou proteção. A notícia, se por um lado enfureceu Bernardo, deixou Guido Cecchi em dívida com a viúva do homem que mandou matar. Intrigado e envergonhado, o velho procurou a filha dos Lotti para agradecer.
“Não entendo. Você deveria nos odiar. No entanto, nos perdoou no velório de seu marido e hoje salvou a vida de meu filho”, falou Cecchi de forma resignada.
“Na verdade, só consegui perdoá-los há pouco tempo. Durante o funeral, só disse tudo aquilo para proteger meus filhos. O verdadeiro perdão não pede nada em troca”, explicou Rita.
Após segundo de silêncio, Cecchi disse.
“Continuo sem entender. Afinal, o que move você a buscar essa paz? De onde vem esta força?”
Rita sorriu e disse, “Minha força vem de Deus. De acreditar que é possível o entendimento entre os homens”.
Humildemente, Cecchi perguntou, “Há algo que eu possa fazer por você para tentar me redimir?”
Rita assentiu e falou, “Procure Bernardo e lhe proponha a paz. Acabe com essa guerra. Volte a andar tranquilamente pelas ruas da cidade em que você nasceu. Permita que seu neto, a quem tanto ama, tenha um futuro”.
Desanimado, Guido replicou, “Ele nunca aceitará…”.
Rita o interrompeu, “Você precisa dar o primeiro passo. Se desejar encontrar a paz dentro de você, Deus o ajudará a encontrá-la com Bernardo”.
Homem rude e de poucas palavras, Cecchi concordou com um manejar de cabeça.
Rita necessitava agora encontrar uma maneira de abordar Bernardo.
A notícia se espalhou rapidamente por Cássia. Bernardo Mancini havia contraído a peste. A família, ainda que relutante, foi levada ao campo, buscando evitar o contágio. Os empregados da luxuosa casa, com medo de contrair o terrível mal, abandonaram o patrão enfermo. Assim que tomou conhecimento do ocorrido, Rita correu à casa da família de seu falecido marido. Subiu aos aposentos e encontrou Bernardo prostrado na cama, delirando devido à febre. Ela se colocou ao lado dele e, com compressas de água, buscava aliviar o sofrimento do cunhado.
“Você não tem medo?”, perguntou o enfermo tremendo.
“Muito pior do que a doença é a sensação de solidão e desamparo que você está sentindo. Estou aqui para fazer companhia. Conheço bem esses sentimentos”, respondeu Rita.
Fragilizado, Bernardo se pôs a chorar, e em meio aos delírios revelou à cunhada seu medo de enfrentar a morte e a Deus, devido aos seus inúmeros pecados. Com dificuldade, externou seu arrependimento por todo o mal que havia cometido, inclusive contra ela.
Rita se compadeceu com sua dor e, ajoelhando-se ao lado do leito, passou a rezar.
Já era madrugada quando o irmão de Paulo conseguiu adormecer. Rita orou até o amanhecer.
Quando os primeiros raios de sol adentraram ao quarto, Bernardo abriu os olhos lentamente e chamou por Rita, que continuava ajoelhada ao lado do leito.
Sentindo que a febre havia sumido, passou a mão sobre a ferida característica das vítimas acometidas pela peste. O ferimento não estava mais lá. Atônito, olhou para a cunhada e balbuciou, “Milagre”.
Rita sorriu e disse, “Você está curado. Seu arrependimento lhe valeu uma chance de recomeçar sua vida, agora buscando a paz”.
Dias depois, quando estava totalmente restabelecido, Bernardo Mancini procurou Checchi. A guerra entre as famílias mais poderosas de Cássia finalmente chegou ao fim.
Rita havia alcançado seu intento. Apesar de feliz, sentia-se exausta após todos os acontecimentos das últimas semanas. Numa certa noite, enquanto agradecia a Deus à volta da paz na cidade, entrou em transe. Percebeu então, dentro do quarto a presença dos três Santos a quem prestava devoção, Santo Agostinho, São João Batista e São Nicolau de Tolentino. Seguiu-os até o topo do penhasco mais alto de Roccaporena. Lá adormeceu, e quando despertou, milagrosamente, estava dentro dos muros do convento de Santa Maria Madalena. A madre superiora, que havia acompanhado os últimos acontecimentos da vida de Rita, encarou o seu aparecimento dentro do convento como um prodígio. Rita finalmente foi aceita pelas agostinianas. Seu antigo sonho de se tornar religiosa finalmente acabava de se tornar realidade.
Era comum nos conventos se exigir das noviças provas de humildade. Rita foi instruída pela madre superiora a regar diariamente uma videira morta. Semanas após o início de sua aparentemente inútil tarefa, a planta recobrou a vida, deixando espantadas as monjas. A recentemente admitida noviça continuou a trabalhar em obras assistenciais na cidade. Cuidava dos doentes, aplacava a ira dos revoltados e acolhia as angústias dos desesperados. Seguia a Regula de Santo Agostinho, conjunto de regras propostas pelo fundador da Ordem. Também se desfez de seus poucos bens, doando-os aos pobres. Após um período como noviça, Rita foi consagrada monja.
Durante anos desempenhou importante papel junto às agostinianas, e foi exemplo de dedicação e amor ao próximo. Não é de se estranhar que ainda em vida, as populações de Cássia e Roccaporena já se referiam a ela como “a Santa”.
Com setenta anos de idade, Rita adoeceu. Durante quatro anos ficou prostrada em sua cama na pequena cela do convento de Santa Maria Madalena. Poucos dias antes de falecer, sentindo o fim próximo, a monja foi protagonista de um belíssimo prodígio. Visitada por uma sobrinha, pediu à moça que trouxesse uma rosa e dois figos de sua antiga casa em Roccaporena. A sobrinha argumentou que, por ser inverno, tal pedido seria impossível de realizar. Rita insistiu com a moça, que ao sair do convento, se dirigiu a casa onde havia morado a agostiniana. Para seu espanto, lá encontrou, no meio da neve, uma roseira com uma única rosa vermelha, pronta para ser colhida. Percebeu, também, a poucos metros, uma figueira com exuberantes frutos totalmente fora de época. Esse episódio, carregado de simbologia, resume de maneira brilhante a trajetória terrena desta mulher corajosa e conhecida como a Santa das causas impossíveis.
Rita Lotti, filha de Antônio e Amata, esposa de Paulo Mancini, mãe de João Thiago e Paulo Maria, deixou este mundo no dia 22 de maio de 1447. No momento de sua morte, todos os sinos de todas as igrejas de Cássia e Roccaporena repicaram, sem que ninguém os tivesse tocado. A Santa de Cássia deixou marcada, por meio de sua história, uma das mais belas provas de fé e determinação.
Fonte: Santa Rita de Cássia (Coleção Santos do Amor)/Editora Aloha
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